sábado, 14 de agosto de 2010

A cicatriz das asas



Até o momento em que ouvia-se os toques do despertador, aquela tinha sido uma manhã comum, como todas as outras. No entanto, no exato instante em que seus pés magros e chatos sentiram a frieza do chão ao pé da cama, toda a normalidade desapareceu.
Examinava-se maravilhado no espelho. Um par de asas que saíam de suas costas, logo abaixo dos ombros e estendiam-se até a altura dos joelhos faziam agora parte de sua anatomia. Penas brancas e macias agora compunham aquele corpo jovem, mas já cansado, formando uma espécie de intermediário entre aves e humanos, um anjo, ou apenas o que realmente era – um homem com asas.
Nenhum minuto sequer foi perdido. Com certa dificuldade subiu na janela de seu quarto, deu um impulso com as pernas e no mesmo segundo estava subindo em direção às nuvens – a manhã estava perfeita para voar. E foi o que fez. Subiu o máximo que pôde, desceu em queda-livre, planou com as correntes de ar, brincou com pássaros e com outras pessoas aladas que encontrou pelo caminho, e no fim da tarde voltou para casa extasiado e dormiu a noite toda de uma só vez.
Já no outro dia, sabia bem o que queria fazer: preparou uma mochila com coisas que precisaria e saiu para conhecer o mundo. Nunca imaginou que pudessem existir tantos lugares incríveis como os que viu em sua jornada, na verdade, não acreditaria nem em fotos se não tivesse visto com os próprios olhos. Meses e memórias depois, voltou para casa e descansou.
Os dias foram passando, mas não sem serem aproveitados. De volta a sua cidade, tudo que fazia era com a ajuda de suas asas, para todo lugar que ia, era voando. A melhor época de sua vida.
Em outra manhã comum, ao acordar, viu que suas asas não estavam mais onde deveriam. Seu corpo voltara a ser o de um humano ordinário – jovem, mas cansado. Sobre a cama, um único vestígio do passado: uma única pena branca repousava perdida entre os lençóis amarrotados.
Sem saber o que fazer, colocou o pé esquerdo sobre o chão – o frio era insuportável – e, em prantos, olhou-se no espelho procurando por algo, nem que fosse uma cicatriz, mas nada encontrou. Em seu corpo não havia uma marca sequer daquilo que nos meses anteriores tinha ocorrido.
Desesperado, andou de um lado para o outro, esmurrando as paredes e amaldiçoando a vida, até que deixou-se cair no chão gelado em um canto da casa. Ali soube o que fazer: reuniu todas as forças que jamais imaginou que tivesse, engoliu uma garrafa de vodka junto com a dor e arrancou suas duas pernas. Jamais andar novamente seria a cicatriz daquele que um dia soube voar.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Atrás do tempo

É (relativamente) comum ouvirmos pessoas, quando falando de outras, se referirem a estas como sendo “a frente de seu tempo”. Pintores, escritores, músicos, políticos, intelectuais, cineastas e bloggers (por que não?) podem ter idéias, teorias, gostos e atos não apropriados para os padrões das sociedades em que vivem, e neste caso, recebem este título que, na minha opinião, é um grande elogio.

ENTRETANTO, algumas pessoas – dentre as quais eu me incluo – parecem ser exatamente o oposto, isto é, atrás de seu próprio tempo. Para ser mais exato, neste momento enquanto escrevo para vocês, estou ouvindo Bee Gees (pois é!), apenas uma das, digamos, antguidades que gosto. Vocês não fazem idéia de como ouço músicas antigas, popularmente conhecidas como “músicas de velho”. Grandes clássicos, músicas não tão conhecidas, anos 50, 60, 70, 80... Se me agrada, eu ouço.

Algumas vezes chego a pensar se nasci na época certa, se realmente tenho a idade que tenho, ou se sou mais velho. Ainda não sei a resposta. Mas o fato é que sou uma pessoa atrás do meu tempo!

O mais complicado é que para uma pessoa atrás do tempo, eu sou a frente do meu tempo. Calma, eu explico. Considerando-me vivendo em outra época – mais antiga – eu sou uma pessoa a frente do tempo. Isto é, para meus contemporâneos (século XVIII, XIX ou início do XX) tenho idéias muito avançadas, no entanto, para as mentes do XXI, estas idéias são absolutamente normais (sem noção, mas normais), totalmente “dentro do tempo”.

Entenderam meu dilema? Meu paradoxo? Por isso não me localizo na linha do tempo, já que para um jovem do século XIX sou revolucionário, e para um do século XXI sou um museu.

Oh vida!